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quarta-feira, maio 21, 2014

"O Capital no Século XXI" (II)

Não é do dia para a noite que um livro de 685 páginas sobre Economia cativa os comuns leitores de rua, Wall Street e a nata dos políticos de Washington espiritualmente com tendência para pensar em petroleiros.
Mas é isso que está a acontecer na América do Norte com o “Capital no Século XXI”, uma obra de Thomas Piketty, um economista de 43 anos nascido em França e formado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). O livro analisa centenas de anos de registos fiscais da França, do Reino Unido, dos EUA, Alemanha e Japão para provar ideias simples e “grandes descobertas”: os ricos na realidade (sempre estiveram) e estão a ficar cada vez mais ricos. E a sua riqueza não corre o risco de desabar. Respira saúde. E sem uma mera reforma da política fiscal, essa lacuna da desigualdade só poderá aumentar nos próximos anos.

Esta é, segundo o editor: “uma obra de extraordinária ambição, originalidade e rigor, o “Capital no Século XXI” reorienta a nossa compreensão da história económica e confronta-nos com soberbas lições para os dias de hoje”. Uma recensão aparece na Time Magazine de 19 de Maio de 2014 da autoria de Rana Foroohar.
Outra nota promocional aparece antes no “Público” de 16 de Maio da autoria do professor universitário João Constâncio. Mas convém avisar os leitores e quem se atreva a uma eventual tradução para português “do volumoso calhamaço que se lê quase como um romance” que irá comprar gato neoliberal vendido como lebre marxista.

o delegado Bilderberg para Portugal acha que sim
Piketty reuniu com economistas laureados com o Nobel, com financeiros bilionários, decisores políticos, com o secretário de Estado Jack Lew, conselheiros económicos como Jason Furman, economistas liberais como Paul Krugman (que apelida a obra de “livro da década”), enfim, com todos os que têm lutado contra o crescimento das desigualdades nos anos recentes, o movimento Occupy Wall Street, Barack Obama e o Papa Francisco (!) segundo menciona em entrevista. Recolhendo ensinamentos de economistas como James Galbraith e Travis Hake, só se verificou uma queda de rendimentos dos mais ricos em períodos que envolvem a intervenção do Estado na economia em tempos relacionados com a guerra. Como foi o caso do “New Deal” nos anos 30 (investimentos de preparação para a 2ª Grande Guerra segundo a política de Keynes adaptada para o esforço militar) e em finais dos anos 40 com o “Plano Marshall” de reconstrução da Europa e o equivalente para forçar o Japão a adoptar submissamente o modelo económico imperialista norte-americano.
Em tempos de economia de paz (1) quais são as grandes dinâmicas que levam à acumulação e distribuição de capital? Questões sobre a evolução a longo prazo da desigualdade , a concentração de riqueza, e as perspectivas de crescimento económico estão no coração da economia política. Mas respostas satisfatórias têm sido difíceis de encontrar por falta de dados adequados e teorias orientadoras claras (lá por aquelas bandas ideológicas) . Assim, em o “Capital no Século XXI” Thomas Piketty analisa uma compilação de dados de vinte países, que vão tão longe atrás como o século XVIII, para descobrir padrões económicos e sociais fundamentais – uma investigação empírica sobre a história do Capital e da sua repartição numa “sociedade de herdeiros”. Os seus resultados, diz o editor, vão transformar o debate e definir a agenda para a próxima geração de pensadores sobre rendimentos e desigualdade. Mas não sem que, noutro trecho do livro, se prive de fazer uma rasgada elegia ao capitalismo como “um extraordinário produtor de riqueza, de inovação, de tecnologia, de bem estar, em suma: de desenvolvimento”. Sobre o “Imperialismo, como estádio superior do capitalismo” o livro é omisso, partindo do principio que já existe de facto implantada em definitivo uma hegemonia global do modelo ocidental, o que é falso, como se vai vendo pelo elevado desenvolvimento de outros modelos nas economias emergentes (principalmente a China e a Rússia).
a recensão do livro na óptica liberal de Krugman

A ocidente, o principal factor de desigualdade – a taxa de rendimento sobre o capital e o património acumulado tende no longo prazo a exceder a taxa de crescimento económico produtivo (a queda tendencial da taxa de lucro de Marx) - corre hoje o risco de gerar desigualdades extremas que agitam descontentamentos e minam os valores democráticos . Mas as tendências económicas não são actos de Deus. A acção política tem restringido as desigualdades perigosas no passado, diz Piketty, e pode voltar a fazê-lo novamente. Por exemplo, no final do século XVIII muitos dos 1% detentores das maiores fortunas viram imensas cabeças dos seus correligionários serem guilhotinadas. Mas, estudando o período que se seguiu à Revolução Francesa que classe social voltou a ter mais rendimentos?

quanto mais criar Capital a partir do nada...
Tal como em Darwin concebeu para a teoria da evolução, o autor descobre no capitalismo (partindo do principio que este é um sistema intrínseco à Natureza) um mecanismo de “selecção natural” que explica como é através da taxa de rendimento do capital (i.e património ou riqueza legado numa sociedade de herdeiros) que se agravam as desigualdades em relação aos rendimentos do trabalho (produtivo, improdutivo ou alienado, não interessa). Esse valor acumulado “tende a ser cerca de 600% do PIB, ou seja, um país precisa de 6 anos para produzir um rendimento equivalente à riqueza que já foi acumulada, e portanto, já existe como património ou capital basicamente privado – “embora essa riqueza em si mesma seja uma coisa boa” - a taxa de remuneração desse capital acumulado permite níveis de poupança que o rendimento de trabalho nunca pode proporcionar”. Assim, toda a sociedade capitalista tende a ser uma plutocracia e a tornar-se materialmente incompatível com a democracia e até com o liberalismo na sua acepção clássica. Mas esse mecanismo que serve ao autor como padrão histórico não é inalterável. A adopção de politicas fortemente redistributivas pode contrariar a dinâmica patrimonial, mas não, obviamente, acabar com a propriedade privada. Isso implicaria alterar as estruturas institucionais. E aqui é importante sublinhar que Piketty não propõe um sistema alternativo ao capitalismo.
Piketty tenta demonstrar que “o crescimento económico moderno e a difusão de conhecimento nos permitiu (aos países do centro capitalista) evitar as desigualdades à escala apocalíptica prevista por Karl Marx. Mas não modificámos as estruturas profundas do Capital e da desigualdade, tanto quanto pensávamos nas prósperas décadas após a Segunda Guerra Mundial”. Apesar do sistema de trocas desiguais que explora o resto do mundo e da acumulação e exportação de capitais que Lenine estudou na sua crítica ao Imperialismo. Especial intensidade na pesquisa é colocada nos últimos 30 anos da vida económica dos EUA, desde que o nível de impostos pagos pelos maiores rendimentos, em nome da livre iniciativa empresarial, tem vindo sucessivamente a ser diminuído, tanto a nível local como a nível nacional. Que os mais pobres e de menores rendimentos paguem proporcionalmente mais “é a ordem natural das coisas” segundo Pikertty. A campanha de Obama para instituir o rendimento mínimo garantido não tem qualquer chance de sucesso a nível federal. E no entanto é uma aspiração nacional dos 40% da população constituída pelos mais pobres e indigentes. Bill de Blasio, novo mayor de New York, uma das cidades mais prósperas do mundo (para os ricos), foi eleito com base nessa promessa. Ao mesmo tempo, cortar os rendimentos médios dos trabalhadores que não conseguem viver do seu salário coloca vastas áreas suburbanas fora do desenvolvimento, uma ameaça permanente aos ricos.

Nos anos 90 a “ciência económica” (de facto o que deveriam ser as escolhas em Economia Politica) foi dominada teoricamente pela matemática e os prémios académicos começam a ser distribuídos pelas construções de modelos multidimensionais de movimentos monetários e esquemas complexos de seguros que cobrem transacções financeiras. Mas estas sofisticadas elaborações tendem a ignorar o mais importante: a acção dos diabólicos actores especulativos. O que resulta em desastres como a falência dos hedge-funds “Long-Term Capital Manegement” (2), o estouro das empresas da Nova Economia no Nasdaq na passagem do ano 2000, ou a dos “Suprimes” em 2008, apenas para citar três das golpadas globais mais danosas para a sociedade, às quais chamam "crises". Aliás, “nada tem significado relevante se não estiver relacionado com as nossas experiências concretas” diz Robert Johnson, presidente do “Institute for New Economics Thinking”, uma organização não lucrativa financiada por George Soros, o investidor húngaro que se tornou famoso por especular com a Libra pondo em risco o próprio Banco de Inglaterra. Aliás, o “Instituto Pensar a Nova Economia” aparece aqui a pronunciar-se porque é o mesmo George Soros quem financiou durante anos a investigação feita por Thomas Pikertty sobre, entre outros já mencionados, cerca de 100 anos de dados da política tributária dos Estados Unidos, desde que o Congresso impôs um novo imposto proporcional sobre rendimentos (IRS) no ano de 1913, exactamente o mesmo ano em que se delega em banqueiros privados a função de emitir dólares na nova Reserva Federal (FED).
Et voilá, a Nova Ordem Mundial
As críticas ao livro notam que se usam argumentos demasiado simplistas; e que o registo dos impostos pagos não é a melhor nem sequer a mais adequada maneira de estudar rendimentos. Pense-se por exemplo no pirata britânico “sir” Francis Drake que surripiava de uma só assentada as cargas de mercadorias e junto com elas os impostos que haveriam de ser pagos no destino. Ou noutros mareantes mais recentes, como George W. Bush, como depois Obama e antes Clinton, açambarcando à paulada a economia legal e com ela a economia paralela de países inteiros. A actual forma de taxação fiscal não se adapta às estruturas de rendimento do século XXI. Na verdade não. Considere-se o valor das remunerações dos super-gestores, que não se podem considerar “salários”, uma vez que são pagas a maior parte das vezes em “stock-options” e “stock-equitys”. Chorudos títulos especulativos para um lado, míseros salários por outro. São cheques em branco para fomentar a desigualdade na economia como um todo. Armadilha o mundo dos negócios, uma vez que as decisões tendem a ser tomadas tendo em vista o curto prazo, o lucro dos colaboradores das próprias empresas o mais imediatamente possível, sem preocupações com o que acontecerá no final do ciclo a longo prazo.

A "reforma fiscal" em Portugal
Piketty argumenta que a reforma do sistema de impostos norte americano – se é que alguma vez virá a acontecer, deverá não considerar apenas os salários, mas também as holdings encobertas, incluindo a propriedade real e os bens intangíveis. Encerrar todos os buracos por onde se escapam os impostos das corporações supranacionais seria uma das primeiras medidas. Um imposto sobre rendimento único global seria a solução. Os povos de todo o mundo deveriam ser unidos e obrigados a declarar todos os seus rendimentos brutos, sendo taxados segundo uma percentagem a determinar pelos governos locais. Em contrapartida seria instituído para cada cidadão do mundo o direito de auferir um rendimento universal – o que na linha clássica de Adam Smith e Jefferson deixaria de ser uma utopia. Se nada for feito, Piketty acredita que há uma forte possibilidade de algum tipo de revolução global estar a chegar, mesmo que seja apenas uma revolução na maneira como as elites pensam sobre rendimentos – na medida em que os negócios das corporações permaneçam opacos e impenetráveis. Mas não existem algoritmos capazes de prever quando e onde as barricadas serão erguidas.

Piketty recusa equacionar e menos ainda discutir opções politicas: “não parto de nenhuma posição, de esquerda ou direita, escrevi este livro não para os politicos, mas para a população em geral que lê livros em última instância afinal são eles que decidem”. Por acaso (!) nos EUA 55% da população não vota, nem de facto existe alternativa: entre os 2 partidos únicos, ganha a 3ª via expressa no partido maioritário dos embrutecidos pelas televisões e talk-shows. E uma vez que aqui não se põe a questão de averiguar quem serão os agentes sociais transformadores que dirigirão tal mudança… Piketty sugere paciência
enfim, sempre o mesmo prato, seja da Lapa ou do Largo do Rato
(1) Lorde John Maynard Keynes: “As (problemáticas) consequências económicas provocadas pela Paz” (1945)
(2) o "Long-Term Capital Management" (LTCM) foi fundado en 1994 por John Meriwether, ex-vice-presidente e chefe de vendas de bonds na Salomon Brothers. A administração incluía pessoas como Myron Scholes e Robert C. Merton, personalidades que compartilharam o Premio Nóbel de Economía em 1997. O Fundo LTCM faliu dois anos depois e teve de ser resgatado por outras entidades financeiras sob a supervisão da Reserva Federal dos Estados Unidos que fabricou e injectou dinheiro para que a crise não alastrasse em cadeia (wikipedia)

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